Por Jorge Bermudez* e Fabius Leineweber**, pesquisadores da área de medicamentos Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e no Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz)
O alerta foi dado nos países centrais e na Índia. O New York Times anunciou, a partir de repórter na cidade indiana de Mumbai, que a epidemia de coronavírus afeta diretamente a capacidade produtiva da China e, consequentemente, a exportação de matérias-primas para as empresas produtoras genéricas na Índia.
Em audiência pública no Senado dos EUA, o diretor da agência norte-americana FDA declarou que um produto estava em risco de desabastecimento e que uma lista de outros 20 medicamentos estava sendo monitorada, produtos cujos fabricantes dependiam de importação da China para sua produção (ver aqui e aqui). Não há informação publicamente disponível sobre quais seriam esses produtos. Entretanto, foi noticiado que em pouco mais de um mês, a FDA está realizando contatos e avaliação com vistas a avaliar toda a cadeia de abastecimento de produtos provenientes de empresas na China.
Em nota oficial, a FDA informa que está monitorando toda a cadeia de abastecimento de medicamentos junto a mais de 180 fabricantes; a indústria de dispositivos médicos com 63 fabricantes que representam empresas baseadas na China; o abastecimento de biológicos e hemoderivados, incluindo terapia celular e gênica, sem relato de riscos de desabastecimentos destes; alimentos; e produtos veterinários, com 32 empresas que importam da China. A agência também propõe uma série de medidas destinadas a mitigar os riscos de desabastecimento.
No Reino Unido, desde 11 de fevereiro, o sistema de saúde britânico, NHS, solicitou análise de risco do impacto do coronavírus e retenção dos estoques de suprimentos médicos. Ressalta-se que estavam com estoques de medicamentos maiores que o normal devido ao Brexit. Na França, a legislação de seguridade social está mudando (aprovada em final de dezembro), incluindo uma exigência de estoque mínimo com multas (ver aqui). A Alemanha, por sua vez, está reforçando a notificação compulsória de desabastecimento (ver aqui).
O governo indiano acaba de proibir a exportação, inicialmente de 26 medicamentos, sem autorização governamental expressa. Essa ordem objetiva proteger o abastecimento interno para a população indiana, considerando que aproximadamente um quinto das exportações de medicamentos genéricos no mundo é proveniente das empresas da Índia. Entretanto, os produtores indianos importam da China muitas das matérias-primas – insumo farmacêutico ativo (IFA) – por causa dos preços competitivos. Entre os produtos relacionados na Índia com restrições à exportação, estão incluídos antimicrobianos (tinidazol, metronidazol, cloranfenicol, eritromicina, neomicina, clindamicina e ornidazol), acetaminofem, progesterona, aciclovir e as vitaminas B1, B6 e B12.
No setor farmacêutico como um todo, continuamos sendo um país dependente da importação de insumos e intermediários, quando não também de produto acabado
Apenas nos últimos dias, a imprensa no Brasil começou a noticiar o impacto que as importações da China pode gerar no nosso setor farmacêutico (ver aqui). Entretanto, em recente Edital, a Anvisa limitou-se a “convocar empresas a fornecerem informações sobre estoques dos produtos sujeitos à vigilância sanitária que podem ser utilizados como insumos essenciais para o enfrentamento ao novo Coronavírus”.
No setor farmacêutico como um todo, continuamos sendo um país dependente da importação de insumos e intermediários, quando não também de produto acabado. A balança comercial de produtos farmacêuticos apresentou déficit de R$ 5,9 bilhões, em 2018, e as importações são na maioria de insumos, em que a dependência de matéria-prima chega a 90%, principalmente proveniente da Índia, China e Alemanha (ver aqui).
Embora os riscos de desabastecimento de medicamentos ainda não sejam evidentes para nosso país, os exemplos das ações nos EUA e na Índia servem de alerta para o Brasil, sem alarmismo, estruturar e coordenar adequadamente nossa cadeia de fornecimento e capacidade produtiva pública e privada. O fortalecimento do SUS, e não seu sucateamento, deve ser a tônica a ser defendida, na contramão das medidas liberais que o governo federal vem implementando. Nossa capacidade de resposta a emergências, como o coronavírus, deixa clara a relevância de políticas sociais, da pesquisa, da ciência e tecnologia e da soberania nacional na produção de medicamentos.
O fato de a China ter sido capaz de construir um hospital em dez dias e mobilizar um enorme contingente de profissionais de saúde mostra a importância de políticas públicas que levaram décadas sendo estruturadas no Brasil. O SUS vai estar sempre como nossa linha de frente!
Jorge Bermudez* é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas.
Fabius Leineweber** é Tecnologista em Saúde Pública do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz).
Foto: Jorge Bermudez durante Encontro Regional Preparatório para 8º Simpósio Nacional de Ciência Tecnologia e Assistência Farmacêutica (8º SNCTAF), realizado em Recife, em setembro de 2018.
Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz