Invisibilidade trans, protagonismo das mulheres, genocídio indígena e da população negra e direito à comunicação são destaques na primeira mesa temática do encontro
As primeiras discussões da etapa nacional da 17ª Conferência Nacional de Saúde jogaram luz sobre questões fundamentais para a justiça social, a equidade e o fortalecimento do SUS. O eixo I – “O Brasil que temos. O Brasil que teremos”, atividade que abriu os espaços de debate da conferência neste domingo (2/07), destacou a representatividade LGBTQIA+, o racismo expresso no genocídio de jovens negros e o direito à comunicação.
A mesa, coordenada pela conselheira nacional de saúde Heliana Hemetério, representante da Rede Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras Feministas (Candaces), e por Valber Rangel, também conselheiro de saúde, médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz e membro do conselho gestor do Ministério da Saúde da área de Territórios e Periferias, contou com as participações da assessora de políticas de inclusão, diversidade e equidade da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Alice Krüger; da Mestranda em Informação e Comunicação em Saúde (Fiocruz), ativista da Rede Mulheres Negras Paraná (RMN/PR) e da Articulação de Organizações de Mulheres Negras do Brasil (AMNB), Michely Ribeiro da Silva; e do jornalista, coordenador e editor chefe do programa Radis (Fiocruz), Rogério Lannes Rocha.
Valber Rangel abriu a mesa trazendo que “as Conferências Nacionais de Saúde produzem novas manhãs para a democracia e para a vida das pessoas”. Ele classificou a realização das conferências a cada quatro anos como “um momento ímpar para mobilizar e estabelecer diálogos com a sociedade brasileira acerca das necessidades – prioridades para cada território – da saúde como direito e a defesa do SUS (Sistema Único de Saúde), além de aprofundar o debate sobre as possibilidades sociais e políticas para barrar os retrocessos no campo dos direitos sociais, em especial os que incidem sobre o setor de saúde, e a necessidade de democratização do Estado”.
A cara do Brasil é a cara de uma mulher preta
Alice Krüger, que é farmacêutica clínica e sanitarista, iniciou sua participação parafraseando o médico sanitarista Sérgio Arouca: “um dos grandes pais do Sistema Único de Saúde, que nos ensinou que saúde e democracia precisam coexistir”, e ressaltando a importância da representatividade LGBTQIA+ na etapa nacional da 17ª CNS. “Sim, tem travesti nessa tribuna e quando tentam nos higienizar é a travestividade que nos traz aqui!”, exaltou. Krüger destacou que a igualdade é uma meta quase utópica, uma vez que é preciso adaptar e dar estrutura para que todos alcancem seus objetivos, e defendeu a necessidade de se pensar em equidade anticapacitista para atingi-la.
Ao discursar, ela apontou publicação de um dos periódicos científicos mais famosos do mundo, a revista “Nature”, sobre a população trans. “Um grupo de brasileiros, liderado pelo professor Giancarlo Spizzirri, estimou por uma modulagem matemática que até 2 por cento da população brasileira se identifique como trans. Pelo menos, somos 4 milhões de pessoas trans vivendo nesse país”. E completou: “As pessoas trans estão aqui, pela primeira vez na história das conferências nacionais (de saúde) falando pra vocês”.
Para combater a invisibilidade trans, Krüger informou que esforços estão sendo feitos para adaptar todos os sistemas de informação e vigilância do país, “para conter os campos de orientação sexual, identidade de gênero, reforçar a completude do campo raça/cor e tudo que visibilize quem nós somos”.
Racismo e sexismo seguem sendo fontes de lucro
Michely Ribeiro da Silva, que é gestora de projetos, psicóloga, mestranda em informação e comunicação em saúde (Fiocruz) e ativista do Movimento de Mulheres Negras, associada da Rede de Mulheres Negras do Paraná e da Articulação de Organização de Mulheres Negras Brasileiras (OMNB), abriu sua participação apresentando um símbolo de Sankofa, conjunto de símbolos que representam ideias expressadas em provérbios originários do povo Akan, da África ocidental – abrangendo os países de Gana, Togo e Costa do Marfim, que se traduz como “Não é tabu voltar atrás e buscar o que se esqueceu”, disse.
Ela apontou que a história do Brasil é constituída, desde o início, de violência e genocídio contra os povos indígenas, que se repete atualmente, com a epidemia de Covid-19 e o aumento da invasão e exploração de seus territórios, “fruto da desestruturação da assistente à saúde indígena e do abandono das políticas de proteção territorial desses povos”.
O racismo, segundo Michely Ribeiro, segue presente em relação às populações negras, com o genocídio de jovens negros. “Enquanto nós estaremos nessa sala, nessa mesa, fazendo um debate extremamente importante sobre a realidade do Brasil, cinco jovens negros serão assassinados pela polícia. É importante falar disso, porque essa suposta ‘guerra às drogas’ oficializa e ignora que o proibicionismo é um grande problema de saúde pública. Que o excesso de investimento em armas e violência contra os jovens da periferia, leia-se aqui esses jovens negros, impacta gravemente a situação de saúde e alarga o encarceramento do Brasil em números inaceitáveis”, afirmou.
Michely Ribeiro finalizou sua participação destacando que o Brasil que queremos se efetivará com a implementação da Política de Saúde Integral da População Negra, com o direcionamento das pesquisas não só para o reconhecimento e políticas estruturadas em evidências, mas também para a articulação entre a ciência e o território, sobretudo os quilombolas, urbanos e rurais, no modo de integrar as universidades e os espaços de formação de coletivos. Ela ressaltou a necessidade de integração entre as práticas integrativas e complementares do SUS e os saberes caseiros em promoção de saúde e cuidado das comunidades tradicionais, incluindo as de matrizes africanas e dos povos originários. A democracia almejada para o país passa pela necessidade de protagonismo da mulher.
Tem que ter pressão
Rogério Lannes Rocha, doutor em informação em saúde, com pesquisa sobre “A Voz do Outro na Comunicação Pública e Saúde”, iniciou sua intervenção lembrando a simbologia da data de abertura da conferência – 2 de julho – como marco na luta pela independência do país, na Bahia.
Ele acrescentou que está estreando como delegado da 2ª. Conferência Livre Nacional de Comunicação e Saúde, após cobrir, como jornalista, outras conferências. Ao longo desse período, comprovou que tudo que diz respeito à democracia, diz respeito à saúde. Lannes destacou o ciclo iniciado na 8ª. Conferência Nacional de Saúde, que pode fazer modificações completas no que que eram as conferências, criando um SUS inédito, acrescido na Constituição, com um movimento sanitário que colocou na carta a seguridade e o direito à saúde.
Depois disso, houve uma década muito difícil, nos anos 90, no sentido de ter que lidar com temas difíceis, como estruturar o SUS, brigar com gestores que não aceitavam a participação social e lidar com o não financiamento – política do neoliberalismo contrariado com o SUS. Este ciclo durou até a 12ª conferência, que acrescentou aos princípios e à construção do SUS uma abertura, que durou até a 15ª Conferencia, para começar a discutir todos os outros direitos.
“Para vocês terem uma ideia, na mesa de abertura da 12ª Conferência Nacional de Saúde só tinha homens, não lembro se todos brancos. Uma mulher foi chamada para ser homenageada e toda a plenária aclamou a permanência dela sentada na mesa. E hoje eu estou feliz de ser cota. De 12 palestrantes hoje e amanhã, só 3 são homens”, apontou.
A partir de 2016, após a 15ª Conferência, até o ano passado, Lannes destacou o início de um ciclo de desmonte total das estruturas públicas e tentativa de desconstrução do SUS. “As políticas econômicas no primeiro ano do segundo governo Dilma, por conta de pressões, já eram ruins para a saúde e os direitos sociais”, lembrou, o que se intensificou acentuadamente nos quatro anos do governo Bolsonaro, com uma verdadeira máquina de desinformação, um momento mais agudo de pobreza, com a volta da fome, e genocídios, em especial contra os indígenas e a população de Manaus. “E um genocídio geral, na minha opinião, que pode ser qualificado de ¾ das mais de 700 mil mortes (pela Covid 19)”.
O país que queremos, afirma Lannes, não pode esperar que quem tem poder hoje em dia faça, nem os que são eleitos. “Tem que ter pressão, gente na rua, corpos na rua, e tem que ocupar os espaços, as esferas onde a disputa simbólica, que é a principal, trabalha – produção dos sentidos, discussão e percepção de visão de mundo”.
Participação popular e reivindicações
Após as apresentações dos participantes da mesa, o público se manifestou sobre o conteúdo apresentado e fez observações. João Batista da Silva Soares, de Pitombeiras (PI) ressaltou a importância da construção de políticas sociais com respeito a todos: “Viemos aqui em busca de uma saúde melhor para todos. Viva o SUS!”. Já Maicon Bruno de Oliveira fez observações a respeito de representatividade. “Não vejo nessa mesa uma representante das pessoas com deficiência”, disse.
Vanessa dos Santos Costa, do Mato Grosso do Sul, e Júlio César dos Reis Peter, do Rio Grande do Sul, destacaram as dificuldades das pessoas com autismo que precisam de equipe multidisciplinar pelo SUS. Bastante emocionado, Júlio César declarou sentir “o quanto a pessoa com autismo é insensibilizada nesse pais. Nos tornem seres humanos”!
Para o quilombola da Bahia, Ananias Vieira, conselheiro estadual de saúde, “O SUS que queremos é esse que está acontecendo agora, depois das etapas estaduais e nacional da Saúde Quilombola”, as quais participou. Já o conselheiro estadual de Saúde de Olinda (PE), João Domingos, disse que “é preciso aumentar urgente a verba do SUS para a atenção básica”.
Outras participações destacaram temas como a saúde mental, falta de concurso público para a área de saúde, assistência a imigrantes e refugiados e tratamentos e cuidados para crianças trans. “As crianças trans não nascem com dezoito anos”, disse a presidente da ONG Minha Criança Trans, Tamires Nunes.
Confira a trasmissão da atividade:
https://www.youtube.com/watch?v=cRAyJam52rk
Confira também a cobertura fotográfica
Liésio Pereira / Rede Colaborativa de Comunicação da 17ª CNS