Mudanças no programa Farmácia Popular deixaram brasileiros de baixa renda sem acesso a medicamentos que eram encontrados com descontos ou gratuitamente. Todas as unidades públicas que distribuíam 112 remédios subsidiados foram fechadas durante o ano passado. Agora, são 32 medicamentos disponíveis por meio do programa que passou a funcionar apenas em parceria com redes particulares de drogarias, cujos contratos estão sob investigação.
O Valor apurou que o Tribunal de Contas da União (TCU), que já analisa fraudes e custos acima do normal nesses convênios entre o Ministério da Saúde e o setor privado, deve, ainda neste ano, examinar também o caso do fim da rede pública do Farmácia Popular. Quase todos esses estabelecimentos pararam de funcionar entre junho e agosto de 2017. Cidades onde não existem drogarias privadas conveniadas, principalmente no norte e nordeste, ficaram sem assistência farmacêutica.
No entanto, em Maringá, município do Paraná e reduto eleitoral do ministro da Saúde, Ricardo Barros, aconteceu o movimento inverso: a Farmácia Popular da cidade, segundo dados obtidos pelo Valor, recebeu em julho recursos para mais um ano de atendimento. A unidade, contudo, foi fechada em dezembro. Barros deixará o cargo e tentará se reeleger deputado em outubro. O Ministério nega ter favorecido o município, diz que o repasse já estava previsto e que vai apurar se há recursos excedentes.
O programa Farmácia Popular foi criado em 2004. Após acordo com representantes de Estados e municípios, Barros anunciou, no ano passado, o fechamento dos quase 400 pontos que recebiam recursos públicos. Foi mantida somente a modalidade “Aqui tem Farmácia Popular”, uma parceria com quase 34 mil unidades da rede privada, que oferece quantidade bem menor de remédios gratuitos, ou com descontos até 90%.
A pedagoga Cláudia Laguna é uma das responsáveis pela Comunidade de Acolhimento e Reinserção Social de Sobradinho (DF), grupo que ajuda dependentes químicos da cidade, a 20 km de Brasília. Segundo ela, sem o atendimento da Farmácia Popular desde agosto, não consegue mais medicamentos subsidiados receitados para ex-usuários de drogas, como diurético, controle da dor, problemas no estômago e anticonvulsão. Todos foram cortados da lista do programa.
“Não têm mais [esses medicamentos] aqui, nem pelo SUS. Agora temos que comprar em farmácia particular com dinheiro da nossa entidade, que é filantrópica, mas já houve meses em que não conseguimos pagar”, afirma Cláudia. Ele agora precisa desembolsar cerca de R$ 600 por mês para adquirir os remédios.
Quando o ministro da Saúde decretou o fim da rede pública do programa, já sabia que 18 cidades do Norte e Nordeste eram dependentes dessas unidades. Para evitar um dano maior, ele reabriu processo para firmar parceria com farmácias privadas nesses locais. Em 15 desses municípios, porém, nada mudou, conforme levantamento divulgado em dezembro. O ministério declarou “que aguarda a manifestação do interesse de farmácias privadas em aderir ao convênio”.
Aquiraz, no Ceará, é uma das cidades excluídas do Farmácia Popular. Morador do município, Francisco Saraiva percorre quase 30 quilômetros até Fortaleza para conseguir em uma drogaria conveniada medicamentos mais baratos para a mãe, que tem Parkinson. Dois fármacos usados no tratamento da doença ainda têm descontos na rede associada ao governo federal. “O problema é que como moro em Aquiraz, a farmácia mais próxima é em outra cidade”, diz Saraiva.
O Ministério da Saúde argumenta que os repasses para as unidades próprias do programa foram encerrados para melhorar a gestão, porque dos R$ 100 milhões gastos por ano, R$ 80 milhões eram custos administrativos. Esse valor, segundo o governo, está sendo transferido para os municípios comprarem remédios.
Contrário à medida, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão vinculado à pasta, diz que foi excluído do debate e que já questionava, à época, o impacto do fim da rede própria, porque em muitas cidades o acesso à assistência farmacêutica poderia não ser garantido. O corte também foi criticado por especialistas e acendeu um alerta no TCU.
“A preocupação do TCU, como órgão fiscalizador, é se a decisão está devidamente fundamentada em estudos técnicos que comprovem ser a melhor solução do ponto de vista orçamentário e também da saúde pública”, afirma o ministro Vital do Rêgo, relator do processo que investiga o programa e que questiona a eficácia do uso do dinheiro público nas parcerias com farmácias privadas.
Três meses antes de Barros anunciar o fim das unidades públicas, uma auditoria da pasta concluiu que houve desvios que podem chegar a R$ 60 milhões, em cerca de 500 drogarias conveniadas. Esse é o valor aproximado que era gasto com a modalidade pública do Farmácia Popular. Foram encontrados recibos de venda de remédio até para pessoas que já haviam morrido.
Dados do governo mostram ainda que o valor pago às farmácias particulares está acima do praticado pelo mercado nas vendas de produtos de asma, hipertensão e diabete – ampla maioria dos atendimentos pelo Farmácia Popular. No caso da insulina, por exemplo, o custo é 175% maior que quando é adquirida pelo SUS. O ministério diz negociar com o setor privado para resolver estes problemas.
O TCU monitora há mais de sete anos os custos desses convênios com o setor privado. Para órgão, ficou claro que os valores pagos são muito superiores ao gasto pela rede básica de saúde. Na média feita pelo órgão, a diferença chegou a 824%. Foi pedido, então, ajustes nos preços e também na concentração de estabelecimentos credenciados nas regiões Sul onde estão mais de 80% das drogarias conveniadas.
Novas fiscalizações do TCU estão previstas para este ano e “poderão incorporar também a recente questão do fechamento da rede própria do programa”, informa Vital. Sobre o repasse feito a Maringá, em meio ao enxugamento das unidades, o ministro lembra que atos públicos têm que ser impessoais e que o TCU pode apurar eventuais prejuízos aos cofres. Segundo o ministério, o cronograma de fim da rede pública considerou o impacto em cada localidade.
Quase 80% dos brasileiros beneficiados pelo Farmácia Popular recebem até dois salários mínimos. Estudos do governo já comprovaram queda nas internações hospitalares por hipertensão e crises asmáticas depois que a gratuidade desses medicamentos foi implementada.
Jorge Bermudez, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde, acredita que o fechamento da rede própria do programa deve onerar ainda mais o sistema de saúde e gerar internações desnecessárias. O presidente do CNS, Ronald Ferreira dos Santos, também defende que o governo considere o “custo-benefício ao paciente, e não somente aspectos administrativos, burocráticos, ou logísticos”.
Fonte: Valor Econômico
Foto: Sul21