Entidades recorrem ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que possa intervir diante do incentivo ao uso, sem evidências científicas de eficácia, da Coroquina e Hidroxicloroquina em pacientes leves de Covid-19
por Jorge Bermudez, Ronald Ferreira dos Santos e Jorge Venâncio*
Terminou em 8 de julho o prazo para o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, enviar ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), informações sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com covid-19.
A medida decorreu de uma ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) e da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar).
As duas entidades ajuizaram no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 707 (ADPF 707), contestando a recomendação do Ministério da Saúde para uso da cloroquina e hidroxicoroquina para covid-19.
O ministro Celso de Mello é o relator.
Já se passaram 18 dias desde a prestação de esclarecimentos do Ministério da Saúde.
Como o STF ainda não se pronunciou, voltamos a solicitar urgentemente um posicionamento da Corte.
Afinal, é descalabro total em pleno século 21 as nossas autoridades sanitárias ignorarem as melhores evidências científicas.
Explicamos.
A medicina baseada em evidências aplica o método científico em toda a prática médica e ocupa lugar especial na busca da racionalidade terapêutica, principalmente estruturada nos tempos contemporâneos.
E, agora, ela cresce em importância no enfrentamento da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2.
Dos achados empíricos ao rigor dos estudos clínicos e aplicação de critérios éticos na pesquisa, a regulação passa a ser importante na definição de protocolos e normas para o tratamento de agravos à saúde.
Ao contrário do que se esperaria de um país com as dimensões continentais do Brasil, um sistema de saúde (SUS) que tem sido modelo para o mundo e uma regulação que coloca nossa ANVISA na categoria de Agência de Referência Regional, o que mais temos assistido em plena pandemia são especulações, propaganda e até distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada e capazes de produzir efeitos colaterais de gravidade.
A OPAS/OMS avalia as agências reguladoras em 4 níveis de desenvolvimento. Apenas o Brasil, México, Colômbia, Cuba, Argentina e Chile estão consideradas no Nível 4 entre as 17 autoridades reguladoras da América Latina.
O nosso sistema CEP/CONEP tem sido pródigo em analisar com celeridade todos os projetos relacionados com a pandemia de covid-19.
Produtos a serem incorporados nos protocolos e diretrizes terapêuticas no SUS passam pelo crivo da CONITEC, nossa instância de avaliação tecnológica.
Mas tudo isso vem sendo atropelado pelos fatos e pelos nossos governantes.
O Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19, elaborado por um conjunto de entidades do campo da Saúde congregadas na Frente pela Vida, foi um passo seguinte à Marcha Virtual pela Vida, que aconteceu há um mês e teve a adesão de mais de 600 organizações e movimentos.
A Marcha teve como bandeiras a defesa do SUS, da ciência, da educação, do meio ambiente, da solidariedade e da democracia.
Os pilares do Plano são a ciência, a competência técnica, capacidade gestora e responsabilidade política.
A proposta foi elaborada levando em consideração a gravidade da crise atual, a responsabilidade constitucional e a “ausência, inércia e, mesmo, promoção de boicotes e obstáculos, deliberada ou resultante de ignorância e negacionismo. O resultado dessa irresponsabilidade trágica é o fato de o Brasil entrar no quarto mês da pandemia, sem qualquer plano oficial de enfrentamento geral da pandemia”.
A imprensa noticia, por depoimentos de integrantes da ex-base de apoio do atual governo, que os recursos que seriam distribuídos para combater a pandemia estão sendo usados para garantir a construção de uma base de apoio, sob a forma de emendas.
Vemos assim o nítido deslocamento da necessidade de confrontar a pandemia com os atuais interesses imediatos e mórbidos de dirigentes governamentais.
Quando mais rigor e mais compromisso se esperaria com perspectivas regionais e de solidariedade global, assistimos permanentemente na mídia manifestações esdrúxulas de apologia a determinados medicamentos no tratamento (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina), inclusive de mandatários desprovidos da necessária competência técnica ou científica para se manifestarem.
Mas quem disse ser necessário esse conhecimento para alardear produtos farmacêuticos no atual regime político que enfrentamos?
Renegam a Ciência, o conhecimento científico, transformando nossas instituições e o País em trincheiras do pensamento ultraliberal e do negacionismo. Mas haveremos de resistir!
Mais apreensão nos causa a captura de entidades médicas pela irresponsabilidade dos nossos atuais governantes.
Na defesa do Ato Médico e da Liberdade de Prescrição, representações médicas, incluindo conselhos, sindicatos e até a Federação, aplaudem políticas erráticas, equivocadas e sem a necessária representação científica ou institucional.
Aplaudem as manifestações de distribuição do famigerado “Kit-Covid”, mais um embuste direcionado à nossa população leiga, que sente estar sendo atendida.
Só que pode estar sendo exterminada pela volúpia irresponsável de nossos dirigentes, com a aquiescência e cumplicidade de entidades que teriam que zelar pela saúde de nossas populações.
É estarrecedor escutar a apologia de “kits-Covid” como estratégia de prevenção e de tratamento da covid-19, como estamos presenciando em vários estados, municípios e setores cooptados pela falácia do governo federal.
Como contraponto, acabamos de ver manifestações de entidades negando o que o Ministério da Saúde insiste em apresentar como diretrizes, sem o respaldo científico necessário e levado adiante pela sanha de diretrizes inconsequentes e eivadas de interesses outros que não a proteção da saúde da população brasileira.
As entidades científicas sérias já se manifestaram. As organizações internacionais também têm posições claras. O Conselho Nacional de Saúde, como legítimo representante do controle social nas políticas de saúde, acaba de externar sua posição clara.
Autoridades brasileiras, menosprezando ou desprezando a medicina baseada em tvidências, teimam em insistir na contramão do mundo!
Irresponsabilidade, genocídio?
Mais cedo ou mais tarde a história cobrará a conta desses governantes e das entidades cúmplices.
Por ora, esperamos que o STF se manifeste urgentemente, pois milhares de vida estão em risco.
*Jorge Bermudez é médico, doutor em Saúde Pública e pesquisador da ENSP/Fiocruz.
Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico, mestre em Farmácia, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos, ex-Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Jorge Venâncio é médico, membro suplente do CNS e coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa- CONEP/CNS
Fonte: Viomundo, em 26/07/2020
Foto: Seac/RJ