O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) lançaram, no dia 27 de janeiro, a Coleção Covid-19, uma coletânea de artigos preparados por integrantes de diversas áreas do conhecimento para discutir as lições, perspectivas e efeitos da pandemia para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para o país. Para fazer essa ampla reflexão, foram convidados mais de 190 autores. Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), é um deles. Leia a seguir:
Qual o valor da Participação Social para a tomada de decisão na esfera pública em tempos de pandemia?
por Fernando Pigatto
- Perspectivas históricas: o povo e a saúde pública brasileira
Para tratar dos elementos específicos que envolvem o papel do controle social em meio à crise sanitária da Covid-19, que afeta o Brasil e o mundo, é necessário compreender as perspectivas históricas que colocam o Sistema Único de Saúde (SUS) como patrimônio brasileiro, fruto de ampla mobilização popular nacional. A saúde pública no país, nos moldes que se apresenta na atualidade, não surgiu por decisão de gestão, mas por herança e esforço coletivo dos movimentos sanitarista e social de redemocratização, com ápice nas décadas de 1970 e 1980.
Antes disso, a Constituição de 1891 atribuía ao Estado a responsabilidade das ações de saúde e saneamento, sem participação popular. As primeiras políticas de saúde, no final da década de 1910, foram marcadas pelo modelo medicalocêntrico, onde apenas intelectuais e a elite podiam intervir. Nesta época, a visão determinista e racista de que negros, indígenas e mestiços eram inferiores pairava na sociedade, inclusive na Ciência. Isso estava associado ao surto de peste bubônica, que assolava os mais pobres, delineando uma imagem de “Brasil doente” (LIMA, Nísia Trindade, et al, 2005). Hoje, os mais afetados pela Covid-19 seguem sendo aqueles mesmos do passado, os quais o Estado ainda não conseguiu reparar sua dívida histórica.
O movimento liderado pelo cientista Oswaldo Cruz, importante referência para implementação de uma nova saúde no país, evidenciou que o problema das mazelas sanitárias estava ligado não às condições biológicas da população, que foi escravizada e violentada pelo Estado por séculos, mas à ausência de saneamento básico. O Conselho Nacional de Saúde (CNS), criado pela Lei nº 378, de 1937, como órgão consultivo, era elitista, com todos membros indicados pelo próprio Ministério da Saúde, inviabilizando divergências e a participação social. O acesso à saúde era daqueles considerados “cidadãos”, excluindo-se dessa noção amplas parcelas da população.
Somente em meados da década de 1980, com a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde e a reabertura democrática, após um prolongado período de regime militar – inviabilizando o desenvolvimento das políticas sociais no país – que tivemos uma inserção real da diversidade da população brasileira na deliberação sobre as políticas públicas. Conquistamos uma nova Constituição em 1988, referenciada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1945), que resultou no capítulo “Da Saúde”, posteriormente na legislação do SUS e da participação da comunidade na deliberação, monitoramento e fiscalização do orçamento da área. Por isso, é impossível dissociar a saúde pública brasileira da noção de democracia, cidadania e das lutas políticas e sociais que se travaram ao longo do tempo.
O CNS conta com representações de usuários do SUS, do governo, prestadores de serviços e trabalhadores da saúde, com eleição a cada três anos. É um espaço crítico e fundamental para evidenciar a voz do povo, sendo capaz de subsidiar as tomadas de decisões. A atuação do controle social brasileiro em tempos de pandemia gerou ações para amenizar o caos instaurado pela crise sanitária atual. Nesse período, o CNS constituiu, junto a entidades acadêmicas, científicas e sociais a Frente pela Vida, que apresentou o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia Covid-19.
Desde 2016, temos um processo constante de desfinanciamento público. A Emenda Constitucional 95 congela por duas décadas os investimentos nas áreas sociais, principalmente no SUS, o que limita de forma drástica as possibilidades de enfrentamento à pandemia e compromete o futuro, com perda estimada em R$ 400 bilhões, de acordo com a Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS. Este é mais um período histórico para a saúde pública brasileira, marcado não pela ausência de marcos legais, mas pela afronta constitucional e retirada de direitos da população, com pouca escuta da gestão federal, numa tentativa evidente de minimizar o papel do controle social para a tomada de decisões.
Ao longo deste ensaio, estão abordadas as principais ações do controle social na saúde no período de pandemia, sempre sob a visão de que é impossível construir um país mais justo e democrático, com um sistema de proteção social público e universal, sem a participação social como elemento prioritário da gestão público.
Foto: Câmara dos Deputados
Ascom CNS